Gilles Lipovetsky : que é Luxo?

Entrevista - Gilles Lipovetsky - parte II

Fernando Eichenberg
De Paris, França

Qual seria a resposta?
Em um primeiro nível, a resposta é "sim". Globalmente, nos países ricos se é mais feliz que nas regiões miseráveis da África, onde as pessoas morrem de fome, não estudam, não têm nenhuma proteção. Em relação à pobreza, o mundo do luxo, do hiperconsumo, da mídia oferece uma existência mais satisfatória. Mas numerosas pesquisas de opinião mostram que, a partir de um certo nível, o aumento do poder aquisitivo não muda nada, não há a sensação de uma felicidade maior. Esse é o dilema. O que explica que nessas sociedades há muitas pessoas que buscam outras coisas, o new age, novas espiritualidades, a benevolência. Veja o caso interessante de Bill Gates, um ultra-rico. Ele decidiu deixar o comando de sua empresa para se dedicar a sua fundação. Não estamos aqui no luxo, na busca de riqueza material, mas em uma busca de sentido da existência. A sociedade hiperindividualista se acompanha de um frenesi consumista, mas, provavelmente ainda mais nas classes médias do que entre os mais ricos, que com freqüência continuam a trabalhar. Brad Pitt, por exemplo, se engajou a fundo pela reconstrução de Nova Orléans. Por muito tempo, o mundo das estrelas era as mansões, as piscinas, as viagens. Brad Pitt e Bill Gates ainda se hospedam nos grandes hotéis, obviamente, mas o luxo não é mais o objetivo, não é o que pode dar sentido. Essa experiência altruísta dá o prazer de se sentir útil. E isso o mercado e o consumo não pode lhe dar. Você vai na Daslu, compra um terno Lanvin, é algo para você. Mas se você quer comprar a experiência de dar felicidade, como fazer? Não são as grifes que lhe darão isso. Em uma sociedade hiperindividualista como a nossa, em que os grandes projetos políticos são difusos e as grandes religiões não controlam mais as consciências, um certo número de pessoas, principalmente os ultra-ricos e ultracélebres, buscam outras coisas. O homem é consumidor. Mas todo o problema é: ele é apenas um consumidor? Eu não creio. Esse é o limite do luxo. O luxo dá um gozo de consumo, de estética, de beleza, é um prazer. Mas ele não pode lhe dar o sentimento de ter vencido, de progredir. Veja Steven Spielberg. Ele não é pobre. Por que faz um filme todos os anos? O que ele busca? Ganhar dinheiro? Ele não precisa mais. A glória? Sim, um pouco, ele já a tem, mas mesmo assim. Mas, provavelmente, é uma questão de angústia. A angústia da morte. Quando não se faz mais nada, quer dizer que acabou. Todo criador sabe disso. Para mim, esse é o grande luxo. Quando se pode continuar a criar, não forçosamente na arte, mas fazer coisas, ter energia para inventar o futuro, isso é o luxo extremo, porque é o luxo da existência. Penso que é o caso de Spielberg como o de Bill Gates. Eles desejam se superar, fazer sempre outra coisa, e melhor. Clint Eastwood é uma superestrela e não pára de fazer filmes. Isso é belo. Estamos longe do mercado do luxo, mas na minha opinião isso é o verdadeiro luxo: a possibilidade, até o final de seus dias, de inventar, de criar. Isso não traz forçosamente a felicidade, mas você escapa da angústia, da angústia do vazio, da angústia da morte. Acho que devemos tirar lições disso para o futuro do século 21. Devemos preparar os homens para isso, a ser não somente consumidores, mas artesãos e criadores de sua própria existência. Isso é algo magnífico e de uma grande beleza. Todos esses grandes criadores no cinema, na literatura, na música, nas empresas. Essa força de recriação de si mesmo. Não existem apenas as grifes no mundo.

Por outro lado, você vê o superficial como uma parte legítima do ser humano.
Não se pode também fazer um elogio incondicional disso. E as marcas de luxo entenderam isso. Hoje, as grandes grifes investem cada vez mais na criação de fundações, quase sempre de arte. Bernard Arnault anunciou a criação da fundação Louis Vuitton, um magnífico projeto do arquiteto Frank Gehry em Paris. E tem também Prada, PPR (antiga Pinault-Printemps-Redoute) ¿ que detém a marca Gucci -, Cartier ¿ com o projeto de Jean Nouvel. Por que essas fundações? Por que a arte aparece como algo que dá sentido, para que o luxo não apareça como algo completamente superficial. Há um incômodo hoje. Há a loucura das compras e, ao mesmo tempo, tudo se passa como se o consumo estivesse à procura de um suplemento de alma. Não era o caso nos anos 1950. Não havia essa culpabilidade. As lojas de luxo usam artistas para criar suas vitrines. Há happenings, instalações nas lojas. As grandes empresas procuram mostrar que uma marca não é algo apenas comercial, mas que contribui à reflexão, a dar emoções, à criação. Alguns intelectuais estão à margem, porque não compreenderam tudo o que havia de positivo no mundo do consumo. O consumo ajudou a pacificar nossas sociedades. Quando há riquezas, o bem-estar, os malls, não há massacres de populações como na África. Nas sociedades ricas não há mais isso. As pessoas querem comprar seu carro e não se matam entre si, não desse jeito. O consumo também deu muita liberdade individual, sexual, familiar. Todo esse universo do consumo por meio da internet abre fontes de informação extraordinárias. As pessoas se comunicam e têm possibilidades enormes de estar em contato e de se abrir para o mundo. Tudo isso é positivo. Mas há um limite. Esse limite eu vejo quando o sentido da existência parece completamente absorvido pelas grifes. Aí vejo algo muito triste, porque o homem não é apenas um consumidor. Há outras questões, políticas, a pobreza, a infelicidade dos homens, a criação, a literatura, a cultura. O consumo não é tudo. O que há por vezes de desagradável é que essa sociedade parece dizer que, no final de tudo, o objetivo da existência é comprar grifes. É demasiado e prejudicial, principalmente, para aqueles que não têm os meios de ser ultra-ricos, porque para eles é um ideal impossível de ser alcançado. Há um tipo de pobreza nessa idéia de consumo total. Quando você se engaja em algo que lhe apaixona, faz música, esporte, escreve um livro, cria uma empresa, o consumo se torna menos importante, porque você tem uma paixão. Por isso que prego pelo que chamo de uma pedagogia das paixões. Devemos dar novas paixões aos homens. Não somente a paixão pelas grifes, mas a paixão de fazer e de criar coisas. Assim o consumo não invadiria a existência. É essa onipresença do consumo na vida das pessoas que não pode ser um ideal. Se fosse um ideal, Bill Gates passaria sua vida em hotéis a consumir, e não é o que ele faz. Ele vai passar agora o essencial de sua vida a comandar sua fundação. Quando se tem realmente muito dinheiro, não quer dizer que o consumo seja o objetivo. O verdadeiro objetivo dos homens é encontrar algo que galvanize sua existência, que dê sentido, que apaixone. Podemos ser apaixonados por relógios, carros, mas se toda sua existência se resume a paixão em comprar relógios, vestidos ou um automóvel, isso não é o ideal.

Empresas não investem em fundações também como estratégias de marketing, para valorizar sua marca? Celebridades não se engajam em causas nobres e projetos humanitários também para melhorar sua imagem junto ao público?
As estrelas também são seres humanos. Por que Clint Eastwood faz filmes. Ele é uma estrela, tem dinheiro. Ele quer fazer coisas, ele acredita. Há essa dimensão. Nos tornamos tão céticos que por tudo vemos somente o lado negativo. Não quer dizer que são todos cínicos e seres detestáveis. Em relação às grandes marcas de luxo é evidente que quando elas se engajam em uma fundação é para dar uma outra imagem a sua grife. Não é algo sem interesse. Uma fundação ligada a uma marca não pode ser algo desinteressado, é dinheiro dos acionários, não se pode fazer o que se quer, é preciso ter um retorno. Espera-se um retorno em termos de imagem e de comunicação. Quando você compra um produto é todo um imaginário que vem junto. A época futura será muito interessante porque é uma galáxia extremamente diversa que se constrói e não haverá mais fórmulas muito simples, vemos vários cruzamentos. É a hibridação de um pouco de tudo. O luxo se alia ao humanitário e ao artístico. Não é algo novo. Mas antes a arte relacionada ao luxo era a arte do establishment ou a arte religiosa. Hoje é uma arte que denuncia a sociedade, mas isso não é um problema, pois as empresas a integram mesmo assim. E há esse novo elo entre o luxo e a arquitetura. Com o tempo haverá um imperativo de criação muito mais forte, exatamente para mostrar a criatividade das marcas de luxo. Será também uma pequena chance de dar um pouco de criação ao espaço público. Hoje os governos não constroem mais. Empresas serão cada vez mais as artesãs da arquitetura da cidade.

Um estudo do ministério da defesa britânico alerta para o fato de que ultra-ricos como o russo Roman Abramovich e o indiano Lakshmi Mittal se apossaram de quarteirões de Londres, criando uma barreira com áreas de criminalidade em alta.
São como as gate communities nos EUA. Isso é algo preocupante, porque quebra o espaço público. A riqueza constrói hoje espaços privados, microcidades, com seus regulamentos, suas câmeras de vigilância. Eles vivem à parte, vão trabalhar em carros blindados. É a imagem bastante desagradável de uma sociedade futura. A globalização empurra para isso? Há entre 10-20 milhões de pessoas nos EUA vivendo em comunidades assim. Há uma diferença com o luxo da Antigüidade, sobre a qual deveríamos refletir. Os gregos e os romanos diziam que o luxo privado é algo maléfico, porque é orgulhoso, humilha. Mas diziam que há um luxo magnífico: o luxo público. É o luxo dos mecenas. Você é rico e dá dinheiro para a cite, Roma e Atenas, para construir um prédio ou promover uma festa para o público. É algo honorável. Mas a globalização favorece o luxo privado. Não há nobreza nisso. Se você utiliza seu dinheiro para favorecer uma favela, aí temos um novo conceito. Eu faço um apelo aos diretores da Daslu a refletir sobre esse belo exemplo. Eles teriam um meio de comunicação excepcional se fizessem isso. Seria magnífico. É o que faziam os romanos. Se você era rico, devia dar muito dinheiro para obras públicas, para festas, para o povo, senão era desprezado. Essa era a marca de um rico. Bill Gates caminha nesse sentido. Mas há todo um outro luxo que se restringe ao privado. Se as grandes marcas de luxo, os bancos, pudessem ajudar a melhorar o espaço público talvez se pudesse dar uma dimensão interessante a um novo futuro do luxo no século 21. É sem dúvida um projeto utópico, mas foi um dos pilares da cultura da riqueza no mundo antigo, o evergetismo. Eu faço o apelo a uma cultura do luxo um pouco mais nesse espírito.

A equipe do ministério britânico foi além e prevê, nesse contexto, a hipótese de que as classes médias poderiam se tornar uma "classe revolucionária".
Não estamos mais no período de luta de classes. Não há mais classe revolucionária. Hoje temos a delinqüência, a criminalidade. Veja o que ocorre no Rio, que se tornou umas das cidades mais perigosas do mundo. Há os palaces, hotéis magníficos, em uma paisagem belíssima e, ao lado, as favelas que invadem a cidade. Há algo um pouco louco nisso. Mas não se vê uma rebelião. É, sobretudo, uma máfia, os seqüestros, a criminalização do mundo, e não a revolução. Para a revolução é preciso uma utopia. Hoje não há mais utopia, só há o mercado. Mas a criminalização é visível. E a América Latina, infelizmente, está em ótima posição nesse domínio. O Brasil é um dos países de maior desigualdade. Que tipo de sociedades criamos? Sociedades do medo. Conheço brasileiros que pagam seguranças para levar seus filhos à escola, porque têm medo de seqüestros. Esse não é um modelo de sociedade desejado. Obviamente que não são as marcas de luxo que vão alterar isso, trata-se de uma mudança muito mais profunda. As grifes não podem abolir a pobreza. Mas é verdade que, hoje, os pobres, os mais deserdados, desejam participar desse mundo do luxo. É uma das razões pelas quais a máfia pode recrutar facilmente indivíduos para vender drogas, fazer seqüestros. As pessoas não querem mais se resignar. A cultura da resignação foi destruída pelo universo do consumo e da mídia. A sociedade liberal do século 21, do mercado, da democracia, precisa imaginar dispositivos que reequilibrem as coisas e que apelem a transformações profundas na educação. Sociedades de enormes desigualdades geram conflitos e crime e desfavorecem o desenvolvimento. É preciso reduzir as desigualdades e fazer um investimento muito maior na educação. Nesse quadro, não tenho nada contra o luxo, mas se pode imaginar muitas coisas que permitiriam ao luxo ser criativo, inclusive na sua relação com o espaço social. O luxo já contribui com belas construções arquitetônicas, com fundações de arte, e pode-se esperar talvez muitos outros projetos.

Você tem um gosto especial pela arquitetura e uma implicância pessoal com a arte contemporânea. Por quê?
Os arquitetos contemporâneos fazem coisas magníficas. A arquitetura será a grande arte do século 21. Adoro Franck Ghery, Rem Koolhaas, Jean Nouvel, Christian de Portzamparc, Renzo Piano, Zaha Hadid, Norman Forster. Não sinto a mesma emoção quando vejo obras de arte contemporânea nos museus. As exposições que vejo me deixam perplexo, me entediam, não têm essa força que me dá a arquitetura. O cinema, a música e a arquitetura são as artes que têm um futuro no século 21. Em todo o caso, são as que mais me estimulam.

Mesmo não sendo um consumidor do luxo, você é contra a crítica fácil do luxo.
A questão do julgamento do luxo é muito complicada. A partir de quando se julga algo como inaceitável? É difícil estabelecer critérios. A crítica é milenar. A partir dos séculos 13 e 14, os reis editaram as leis suntuárias. Eles viam os nobres rivalizarem em riqueza e impuseram proibições. Proibiram o ouro no vestuário. Mas isso nunca foi eficaz, pois sempre foi contornado. Diante do luxo é difícil não se ter um julgamento. É difícil legitimar somas astronômicas para produtos descartáveis. O problema é estabelecer uma medida. Mas a cultura do luxo, a perfeição, o belo, a criação, tudo isso me parece excelente. Não se pode ser um asceta e denunciar isso. A aspiração à beleza é algo legítimo. O problema é quando essa concretização da beleza é vendida a preços extremamente altos. Isso coloca certos problemas éticos. É algo que existe, mas não falo disso nos meus livros porque é muito fácil jogar com a denúncia desse tipo de coisas. O luxo não me choca quando ele tem uma verdadeira dimensão coletiva, se ele é visível. Por exemplo, um hotel. Nem eu nem você podemos nos hospedar em um hotel de 20 mil euros a diária. Mas se esse hotel tem uma arquitetura absolutamente sublime, não sairei em guerra contra isso. Por quê? Talvez porque são como os Versalhes de hoje. A beleza no espaço público é importante. A arquitetura é um exemplo interessante, pois pode mudar a percepção do espaço público. A implantação de museus privados, Guggenheim e outros, é algo sublime. Mesmo se é algo destinado exclusivamente a um público privado, eu não seria extremamente severo, pois haveria um benefício público. Mas quando é um puro produto de uso individual, a um custo ilimitado, diria que sua legitimidade é mínima. Um vestido e um anel é diferente de um hotel. Um tem uma dimensão pública e, os outros, não. Seria como se denunciássemos Luís 14 por isso. Milhares de pessoas consomem o luxo. Quando se vai ver as pirâmides, os templos, as mesquitas, todas essas construções são luxo, é sublime. Todos nos tornamos hoje grandes consumidores do luxo pelo turismo. Dá prazer às pessoas ver tudo isso. Os novos prédios arquitetônicos de hoje são um pouco como os grandes palácios de outrora, por isso não sou severo. É o que ficará no futuro, e não a roupa feita de pele de crocodilo.

Contra os que dizem que a globalização e o consumo promoveram uma padronização generalizada, você defende que nunca houve tanta diversificação e possibilidades de escolha no mundo.
Se diz muitas vezes que o consumo é a estandardização, McDonald's por tudo, as mesmas grifes por todo o lado. Mas, ao mesmo tempo, nunca houve tanta escolha e diversidade de estilos. É verdade que você vê as mesmas marcas em São Paulo e Paris, mas as lojas são diferentes. E Myake é diferente de Dior, que é diferente de Jean-Paul Gaultier. São estilos extremamente diferentes. Você tem uma escolha estética muito grande. Se pode dizer o mesmo se saímos do domínio do luxo. Nunca se publicou tantos livros como hoje. As pessoas parecem ler menos, mas, ao mesmo tempo, são centenas de novidades lançadas pelo mercado. No cinema é igual. Hollywood lança 800 filmes por ano; a França, 200; os japoneses, 400. Estandardização? Há os blockbusters, é verdade. Há Spiderman 1, 2... Mas, ao lado, você tem uma variedade de filmes. Little Miss Sunshine não é um filme padronizado. Há um efeito de estandardização porque as marcas são mundiais. Mas nunca houve tantas marcas e de universos estéticos diferentes. Em São Paulo, a cada 300 metros há um McDonald's, é verdade. Mas se você quiser pode comer diferente todos os dias. A sociedade de consumo funciona na diversificação. Baudelaire já dizia no século 19: a paixão do homem é a curiosidade. E a paixão do consumidor é a novidade. Somos junkies viciados na novidade.

Qual seria a crítica válida ao consumo?
Para mim, a crítica do consumo está na existência. É o lugar demasiado que o consumo ocupa na vida das pessoas que me preocupa. Consumir revistas de celebridades não é um problema, mas ler apenas isso, sim. Eu não sou maniqueísta. Quando minha filha tinha 13 anos, era uma fã de Michael Jackson. Havia artigos sobre a manipulação, o starsystem, o showbizz, dizia-se que tudo isso era extremamente perigoso para os jovens. A paixão dela por Michael Jackson durou dois anos. Depois, ela se tornou advogada, hoje trabalha. Aquilo não fez mal nenhum, porque ela tinha outros interesses na vida. É uma questão de civilização. Não se pode fazer um processo contra o consumo. Essa dinâmica não vai parar. O universo do consumo é a mercantilização das atividades humanas. Cada vez mais as coisas são aspiradas no ciclo da troca mercantil. Tudo se faz em uma escala maior. Haverá uma planetarização do hiperconsumo, isso me parece irreversível. É preciso ser realista. Devemos fazer com que esse universo do hiperconsumo seja viável. Isso implica um desenvolvimento sustentável. Devemos também estimular novas formas de educação para que o consumo seja apenas uma parte da vida das pessoas, que não se viva exclusivamente para isso. Minha crítica ao consumo não é econômica, mas cultural. Não devemos viver para consumir. Mas o consumo dá satisfações e prazeres. Embora eu não seja um exemplo consumista, entendo que as pessoas tenham prazer em se vestir bem, viajar. Esses prazeres da vida não devem ser denunciados. Mas são apenas uma parte da vida. É preciso haver um equilíbrio entre o consumo e outros aspectos da vida. Acabamos voltando à sabedoria antiga: o que é demais é ruim. Devemos encontrar um melhor equilíbrio entre a paixão pelo consumo e a paixão pela ação. Há muita frustração no nosso mundo, mas ela não está no consumo. Há a frustração no trabalho, a frustração sentimental e a frustração sexual. Há mais de uma pessoa em cada duas insatisfeita na sua vida sexual. Uma das grandes forças do consumo é que ele frustra pouco as pessoas. As verdadeiras frustrações estão em outro lugar. Quando você compra um carro modesto se sente feliz. Você não precisa morar no hotel Carlton ou no Ritz, pode ser feliz em seu pequeno apartamento. Você pode ter férias felizes e modestas. Você não precisa ter uma Sharon Stone ou uma Nicole Kidman para encontrar o amor na sua vida. Pode-se ter uma experiência de satisfação mesmo fora das marcas as mais sublimes.

O amor é, segundo você, uma das poucas coisas ainda não absorvidas pela mercantilização.

Mais há uma mercantilização, mais há uma busca pela autenticidade. A questão é que a autenticidade hoje é móvel. Mas ela é verdadeira enquanto a vivemos. Há vários limites para a mercantilização. Um deles são os sentimentos, o valor amoroso. Outro limite são os valores éticos. E, por último, a verdade. Há um certo número de princípios que dá um termo à lógica da mercantilização e que faz com que tudo não seja espetáculo, show ou equivalente entre si. Isso é que permite a crítica da sociedade e também a fazê-la mudar. Há tensões, energias, potenciais que permitem imaginar críticas, correções. E será necessário fazer essas correções. Estou convencido de que as coisas um dia mudarão, mas não logo. Uma cultura que dá mais peso às grifes e ao consumo do que à criação não é algo normal. Há um desequilíbrio. Um dias as coisas vão mudar. E é a educação que deverá fazer isso. As coisas devem ser relativizadas. E para isso é preciso ter outros objetivos na vida. Mas isso não é o consumo nem a crítica do consumo que vai fazer.

O que você aprecia como lazer?

À noite assisto a tevê. Nunca tiro férias, porque tenho a impressão de estar sempre em férias. Não gosto de separar férias de trabalho. Para mim, refletir, escrever, pensar é muito estimulante. Passar oito dias em uma praia sem fazer nada é o horror. Seguido viajo a diferentes países para fazer conferências, encontro novas pessoas, trabalho e viajo ao mesmo tempo. Gosto muito dessa mistura. Mas detesto o turismo. Não me interessa ver cartões-postais. Vou a São Paulo, Rio, Porto Alegre e Belo Horizonte para conferências, mas não sou obcecado por visitar todos os lugares do Brasil. O que me interessa são as pessoas que encontro, a vida, e não o turismo em si. E gosto muito de caminhar. Todos os dias, entre 17h30-18h, saio para caminhar por cerca de duas horas. É uma maneira de relaxar. Faço sempre o mesmo trajeto, para não ter de pensar muito. Deixo o espírito livre para sonhar. É um tipo de oxigênio para mim.

Você tem ipod?
Não tenho esses aparelhos, só um telefone celular, que é bastante útil. Adoro a tecnologia. O que não gosto é de aprender a usá-la. Depois que se sabe, é formidável, mas não tenho muita paciência para aprender. Tinha um velho celular e o guardei durante muito tempo, pois não queria um novo para ter de aprender tudo mais uma vez. Minha relação com a tecnologia não é lúdica, mas muito prática.

Por que você escreve todos os seus livros à mão? Não seria mais fácil no computador?
Para mim é muito demorado escrever no computador. Escrever à mão, por um lado, é mais trabalhoso porque depois é preciso transcrever tudo. Normalmente dou o livro inteiro para uma secretária passar para o computador. Mas há aspectos agradáveis. Quando viajo, escrevo por todo o lugar somente com um lápis e uma borracha. É algo bastante artesanal. Eu me lembro uma vez no Rio, estava hospedado em um magnífico hotel em Copacabana, tinha uma janela com vista para o mar, e por cerca de três horas escrevi à mão um pequeno capítulo do livro sobre o luxo. Gosto muito da internet para fazer pesquisas, mas para escrever prefiro o papel, acho mais cômodo. Deve ser minha idade, não fui formado no computador.

Você já viajou uma dezena de vezes ao Brasil. O que pensa do país?
Gosto das pessoas no Brasil, de seu bom-humor, da música brasileira, das paisagens, mas não tenho uma teoria sobre o Brasil. É verdade que há todas essas desigualdades, bastante visíveis. Espero que o Brasil consiga reduzir essas desigualdades, que são excessivas. É um país que precisa de mais unidade, de mais harmonia.

Você detesta o turismo e não se pode dizer que seja um exemplo de consumidor de luxo.
Não faço turismo e não sou consumidor de luxo. Não me interessa. Para mim, o verdadeiro luxo é ter projetos que dão relevo a minha existência e que me levam a imaginar o futuro diferente do presente. Minha definição de luxo é bastante existencial. Isso me dá muito prazer, mas também muita ansiedade. É a vida. Minha vida não é luxuosa materialmente. Mas não quero dar lições aos outros de como se deve viver. Há um luxo plural hoje, muito interessante, porque vai de arquiteturas sublimes a produtos mais ou menos acessíveis a uma grande parte da população, e que gera produtos de qualidade. Há um mercado muito variável, que não é forçosamente inacessível, e se pode falar de um sorvete, um legume de qualidade. A qualidade, que é a marca do luxo, deve ser desenvolvida. Deve ser estendida às maçãs, às laranjas, às coisas simples. Isso é um luxo enorme. Não vejo diferença entre degustar um excelente pêssego e um caviar. Haverá diferença se você tiver o caviar e um pêssego ruim. Mas se a fruta é magnífica, perfeita, é um luxo. O que pedir mais? O luxo não é forçosamente o que a maioria das pessoas não pode comprar. Eu não sou hostil ao luxo, mas no seu universo o que me interessa são os produtos de qualidade, os sabores, as belas coisas e também o luxo da existência, que para mim é a paixão de sempre poder fazer coisas novas. A existência é diminuída quando não há mais essa paixão. O luxo, em princípio, é a expansão da existência.

Fonte: Terra Magazine

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