Camus - A Comédia

Crise e Ímpeto

“Nada interessa mais ao homem moderno do que ele mesmo”. O homem moderno é o centro consciente de um universo, de quem tudo emana e para o qual tudo se dirige e se rende. No entanto, “a decepção em relação à vida sempre corresponde a uma ausência de sentido de ser, uma insatisfação existencial” (Bertrand Richard). No Sísifo de Camus, há um capítulo rechonchudo sobre a comédia. O capítulo tem este nome mesmo “A Comédia” é pleno de símbolo, porque prenhe de significado.

Camus lança seu olhar simbiótico sobre o ser do homem que, uma vez ensimesmado, se lança na fecunda procura do consumo das personagens do teatro, como via para uma espécie de catarse. No teatro, o ator é perecível, como todo humano o é. Mas, sua personagem suplanta o ínfimo tempo de existência do palco. As pessoas e, consequentemente, os atores, levam consigo as ricas, doces e estranhas personagens do teatro e estas serão citadas em algumas futuras conversas das suas vidas “reais”. O que é real e o que se constitui em imaginário na vida das pessoas?

Alberto Camus, comentando a efemeridade da glória do ator, afirma: “do ponto de vista de Sirius, as obras de Goethe dentro de 10 mil anos serão pó, e seu nome será esquecido. (...) Essa ideia sempre tem sido educativa. Bem considerada, ela reduz as nossas agitações à nobreza profunda que se acha na indiferença e principalmente orienta as nossas preocupações para o mais seguro, isto é, para o imediato”. O homem da sociedade hipermoderna foi educado para centrar sua existência num constante “imediato”. E hoje, somos cônscios de que o excesso esvazia o ser. O vazio mais temido, no entanto, é o vazio de sentido, de significado na vida. Perder o sentido da vida é atravessar a margem e habitar no reino do autómato.

Esta temática se instalou na sociedade contemporânea por esta ser a época em que se aprofunda a crise do humanismo. Identifica-se, portanto, estreita relação entre esta crise o a morte de deus, problematizada pelo Filósofo Nietzsche. “A morte de deus é momento culminante e final da metafísica. Na contemporaneidade, deus morreu e o homem não vai muito vem. É inegável que existe uma conexão entre a crise do humanismo e a morte de deus” (Vattimo Gianni). Esta morte não geraria uma crise como consequência se o lugar que ele ocupava na existência humana não tivesse ficado vazio.

“A morte violenta de deus levou consigo a humanidade do homem em todos os homens. Não apenas a religião foi junto, a ética, a arte, a moral, a metafísica, a política, a dignidade e a liberdade. Nenhuma grandeza histórica escapou a esse estado desta avalanche. Os espaços da convivência vão sendo ocupados pela repetição automatizada de autômatos (pessoa que age como máquina, sem raciocínio e sem vontade própria). A força do mal não é outra força, é a mesma do bem. Eliminar dos homens o poder do mal não acaba somente o mal. Acaba junto tanto o bem como o mal”. (Emanuel carneiro leão – UFRJ – artigo: “A crise da Ética hoje”).

Você deve estar se perguntando o que tem a ver a crise do humanismo traspassado pela sociedade da decepção (LIPOVETSKY) com “a comédia” de Camus. Veja! A ironia se estabelece no fato de que a maioria consome o teatro não por um esclarecimento acerca da arte, da estética, mas como um “passatempo”, como uma fuga de algum estado crônico de tédio. A ironia se apresenta porque a singeleza e a profundidade com que Alberto Camus define e pensa o ator, o teatro, a personagem e a arte em sim contrasta com aquilo que se apresenta hoje na maioria das pessoas.

“O ator é o intruso” – afirma Camus. Por isso, deve desaparecer em cena. O ator, enquanto artista profissional no teatro, morre a cada vez que sobre ao palco. Quanto mais sua personagem é dotada de excelência qualitativa, tanto mais inexistente o ator se fará e vice-versa. Dessa morte, o ator extrai o gozo da sua glória e eterniza o seu ser na sensação final do dever cumprido e na consciência da legitimação da qualidade do seu “fazer” artístico explicitada num som inconfundível: os aplausos. Afinal, os aplausos são para os atores ou para as personagens. Ou para quem devia ser? Afinal, nisto tudo, o ator morre, mas não perde a consciência.

O absurdo se deleita e se dilata num espaço e num tempo em que as consciências relaxam. Nada ou ninguém concorre com aquele momento no qual a personagem dá-se ao gozo alheio. O absurdo não estar no ator, muito menos na plateia, enquanto corpo formado por um conjunto de pessoas. O absurdo estar na amarga sensação da plateia que, uma vez terminado o espetáculo, volta para a vida “real”. As consciências, as memórias e as emoções estão carregadas de realidades indesejáveis, desagradáveis e, por vezes, dolorosas. Com o que carregamos nossas consciências?

Ora, a dor e o sofrimento são inerentes ao ser do homem, pelo simples fato de que sermos essencialmente emoção. Somos animais emocionais, afetivos e não pode ser de outro modo. "E abençoados sejam aqueles" diz Hamlet "cujo sangue e julgamento são tão curiosamente misturados que eles não são flauta em que o dedo da fortuna faz cantar o buraco que lhe apraz" (CAMUS – o Mito de Sísifo). A busca não é a da eternidade, como presume e ensina a velha igreja. Afinal, "O que importa" diz Nietzsche "não é vida eterna, é a eterna vivacidade".

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