Para ser continuado Alberto Camus - Sísifo.

Alberto Camus – O Mito de Sísifo: Suicídio ou Restabelecimento.

obs.: Frases aspeadas sem a devida citação posterior se referem à obra de Camus à qual o presente texto de refere.


Há quem afirme que podemos “dizer mais do que nós pode saber” (Rorschach), outros, por sua vez, afirmam que “podemos saber mais do que podemos dizer” (“We can know more than we can tell”) (conhecimento tácito - Michel Polanyi), com nossos sentimentos se dá algo semelhante, isto é, não possuímos linguagem suficiente para exprimir a totalidade daquilo que os sentimentos mais profundos manifestam. No que se refere aos sentimentos, há conteúdos internos para os quais não temos palavras, a não ser acalentadas lágrimas, esplêndidos sorrisos, silenciosos abraços, mudas carícias que, não obstante o fato de serem sem verbalização (oral), exprimem o máximo de comunicação emocional.

Alberto Camus, na obra O Mito de Sísifo, afirma que “os sentimentos profundos sempre significam mais do que o que têm consciência de dizer”, no fundo da questão, o que se coloca são instâncias profundas suficientemente para fugir à consciência e à capacidade de serem verbalizados, ou seja, são instâncias que “a própria alma ignora”. Por vezes, diante de uma alteração no estado emocional de alguém que conhecemos, algo que sugere tristeza, perguntamos: “O que você tem?” Ou então: “O que aconteceu?”” Por inúmeras vezes, eles respondem: “nada”.

Apesar da palavra significar ou simbolizar “coisa nenhuma” ou ainda “o não-ser”, isto é, a negação de qualquer coisa que seja, somos capazes de perceber que nesta simples palavra está contido um universo complexo, dinâmico e delicado no qual e a partir do qual se exprime toda a idiossincrasia e toda conflituosidade em que está mergulhada a pessoa a quem fizemos a pergunta. Portanto, “mas se essa resposta é sincera; representa-se esse estado d'alma em que o vazio se torna eloqüente, em que a cadeia dos gestos cotidianos é rompida, e em que o coração inutilmente procura o anel que a restabeleça, então ela é como que o primeiro sinal da absurdidade”.

Cada sentimento possui uma gama de correlações, de entrelaçamentos e, por vezes, de conflitos com realidades externas que se configuram, por vezes, a partir do universo simbólico e da idiossincrasia de outra pessoa. È na órbita deste sentido que Sartre afirma que “o inferno são os outros”. As pessoas nos constrangem à ação em diversas circunstâncias do relacionamento mútuo. Neste contexto, “as emoções precedem os sentimentos” (DAMÁSIO – 2004, p. 37). Camus afirma, portanto, que “há um universo do ciúme, da ambição, do egoísmo ou da generosidade. Um universo, isto é, uma metafísica e um estado de espírito”. Desperta interesse a palavra ‘universo’ que Camus utiliza. Tal palavra insinua uma totalidade com proporções dantescas e, por vezes, desmedidas. Concebo que uma pessoa que se encontra num acesso de ciúme perde o norte proposto pela razão e, neste complexo jogo de emoções, ou a partir dele, esta pessoa é capaz de matar e de suicidar-se.

Nos dois casos, há a tentativa equivocada de atingir à pessoa pela qual sente-se ciúmes. As emoções são complexas e, assim como as pessoas, nos constrangem à ação, justamente porque são “tão confusas e tão “certas”, tão distantes e tão “presentes” quanto aquelas que o belo nos desperta ou que o absurdo nos suscita” (Camus).Um sentimento sugere percepção de impressões, de intuições, justifica-se pela sensibilidade que possibilita a sensação de algo e a consciência íntima de si mesmo em todos os sentidos. Certas considerações, se não todas, são possíveis mediantes os sentimentos. As emoções, por sua vez, se constituem em estado de ser, harmônico ou não, que, por sua vez, é o espelho da vida interior. Justamente por ser um estado de ser interior é as emoções podem ser alteradas pelas mais variadas pessoas e seus comportamentos em relação a nós, pelos acontecimentos e fatos, pelas imagens e coisas, enfim, pelas diversas “coisas” exteriores. Sendo assim, o nosso interior é constantemente alterado pelo exterior.

Contudo, se coloca a pergunta sobre o “sentimento da absurdidade”. A palavra é sentimento justamente por ser em sua esfera que se dá uma lógica própria, não racional, incompreensível até, responsável por “ordenar” tudo aquilo que lhe diz respeito. Constitui-se em incompreensão do início ao seu fim, quando há fim. Nenhum sentimento, inclusive o da absurdidade, nasce como uma explosão repentina e violenta muito menos com rapidez. Ou seja, “todas as grandes ações e todos os grandes pensamentos têm um começo irrisório”. Tudo isto, inclusive o universo do absurdo em nós, “extrai sua nobreza desse nascimento miserável”.

Não escapa à escrita analítica de Camus o papel que a rotina desempenha em todo este processo. Se, por um lado, ela, a rotina, é responsável pelo cansaço, este, por sua vez, é responsável pelo nascimento do questionamento acerca do sentido, do significado de tudo isto. Nasce o ‘porquê’, o ‘para quê’ e a razão e a consciência não descansam, enquanto não for concedida ou construída uma resposta.” Ocorre que os cenários se desmoronam. Levantar-se, bonde, quatro horas de escritório ou fábrica, refeição, bonde, quatro horas de trabalho, refeição, sono, e segunda, terça, quarta, quinta, sexta e sábado no mesmo ritmo, essa estrada se sucede facilmente a maior parte do tempo. Um dia apenas o "porquê" desponta e tudo começa com esse cansaço tingido de espanto. "Começa", isso é importante. O cansaço está no final dos atos de uma vida mecânica, mas inaugura ao mesmo tempo o movimento da consciência”. Sentido significado podem se constituir em bases sobre as quais estão construídas nossas crenças, valores, conceitos e preconceitos, todavia, necessitam de ressignificação constante, caso contrário eles ruem absurdamente, gerando hercúleas crises internas. Assim, temos que “no extremo do despertar vem, com o tempo, a conseqüência: suicídio ou restabelecimento”. Nas proximas postagens, continuo com Alberto Camus e o Mito de Sísifo.

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*Obras de Guido Reni

**DAMÁSIO, ANTONIO. Em busca de Espinosa: prazer e dor na ciência dos sentimentos. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

**POLANYI, M. Personal knowledgetowards a post-critical Philosophy. Chicago: The University of Chicago Press, 1958

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