O show de truman

O Show do homem Verdadeiro

Já estão cansados de atores com emoções falsas.

Cansados de pirotecnia e de efeitos especiais.

Embora o mundo em que habita seja, de certa forma, falsificado,

Truman não tem nada de falso”.


O filme ‘O Show de Truman, O Show da Vida’(The Truman Show) do diretor Peter Weir é iniciado com as palavras acima. Truman é um homem de 30 anos que viveu toda sua vida, desde o nascimento, numa esfera gigante, sem o saber, na ilha Seahaven. Todavia, 1,7 bilhão de pessoas, no mundo inteiro, assistia ao espetáculo da sua vida pelas telas da Televisão. “Toda a vida de um ser humano gravada em uma rede de câmeras escondidas e transmitida ao vivo e sem cortes, 24horas por dia, 7 dias por semana, a telespectadores do mundo todo”. Truman foi o primeiro bebê adotado legalmente por uma empresa, única e exclusivamente para a realização do programa “The Truman Show”. No filme, os lucros gerados com o Show eram equivalente ao PIB de um pequeno país.


No filme, são revelados dois momentos distintos: por um lado, (1º) um momento em que o público reage com indiferença aos programas televisivos, promovidos pela mídia e, por outro, (2°) a interpenetração mútua do show de Truman na vida “real” das pessoas reais, e a fusão desta (vida) no show de Truman. O Show ao qual o filme se refere é uma tentativa desesperada da mídia de re-conquistar o público, de re-tomar o controle das pessoas que, pela uniformidade dos programas apresentados pela mídia, estavam fugindo ao controle, ao cabresto da mídia. (lembrem-se: Cabresto significa também boi manso que serve de guia a touros. Truman é o “boi manso” utilizado para atrair as pessoas. Algo semelhante ao que se dá nas diversas versões do Big Brother e nos canais de televisão aberta, aos domingos no Brasil, com Silvio Santos, Faustão, Gugu, Ana Hickmann, Eliana e demais.


O que significa Truman? “Truman é um nome próprio, um sobrenome: true (pronuncia-se tru) quer dizer verdadeiro; man, homem; show, espetáculo, e o verbo to show quer dizer mostrar. (...) O título diz,

portanto: “espetáculo de Truman”, isto é, “espetáculo do homem verdadeiro”” (CHAUÍ, 2006, p. 18). Ao assistir ao filme, percebe-se nitidamente que Truman é o homem verdadeiro porque, no programa de televisão, tudo o que faz, diz e exprime é verdadeiro porque ele não sabe que vive uma fraude. Algo

como afirmar que tudo o que se vive é verdadeiro até descobrir que os parâmetros sobre os quais se baseavam todas as suas crenças são

simulacros, falsificações. “Apenas quem sabe a verdade, sabe mentir”. Se Truman é verdadeiro porque não mente, as pessoas que assistem ao seu show, mesmo sabendo que o modelo de vida do Truman não é real, são o quê?


Este filme está incluso no número dos grandes filmes reflexionantes ou filosóficos/reflexivos que o cinema produziu, abordando a temática da verdade versus fantasia, da realidade versus ficção, tendo como pano de fundo o controle ideológico midiático. Todavia, a discussão sobre o real e o simulacro não é recente, ainda que esteja profundamente latente agora, em tempos de controle midiático da massa. Platão (428/427), bem antes de Cristo, já abordava a questão da distinção entre ‘Mundo das Idéias e Mundo Sensível’, defendendo o argumento de que o real está no mundo das ideias; o que se apresenta aos sentidos, no mundo sensível, é simulacro, é doxa (opinião).


Para entender esta afirmação platônica, é necessário compreender que a filosofia de Platão, pelo menos no que concerne a esta distinção, tem como matriz as filosofias de Heráclito e de Parmênides. De Heráclito, Platão trabalhou a temática das percepções do mundo material e sensível, isto é, das imagens e opiniões. Segundo Platão, a matéria é algo imperfeito e, por estar em constante mudança, é o reino da opinião (doxa). De Parmênides, Platão aproveita e retrabalha a ideia de que a filosofia devia afastar-se deste mundo sensível, de constantes alterações, e devia ocupar-se apenas do mundo verdadeiro, inalterado, o das ideias, porém visível apenas ao puro pensamento.


Por outro viés, mas, nem por isso, menos importante, René Descartes (1596 -1650), considerado o primeiro pensador moderno, inicia sua filosofia com a dúvida hiperbólica, desconfiando de tudo o que tinha aprendido até então. Afirma, portanto, que possuía “extremo desejo de aprender a distinguir o verdadeiro do falso” (DESCARTES, 2002, p. 82). Esta afirmação de Descartes faz lembrar a máxima de Rubens Alves: “Todo pensamento começa com um problema” (ALVES, 1982, p. 23). Duvidar de tudo (pôr tudo à prova) foi o primeiro problema de Descartes. A única coisa da qual não podia duvidar era do fato de que estava pensando (duvidando), isto é, do fato de que era uma substância pensante. A partir disto, concluiu logicamente: “Penso, logo existo” (Cogito, ergo sum). René Descartes sugere duvidar de tudo quanto for incutido pelo exemplo e pelo costume sem detida análise racional.


No Show de Truman, há esse jogo entre a realidade e a ficção, entre o real e a fantasia. As duas se coadunam. Todavia, isto não se dá sem que patrocinadores fizessem deste programa uma vitrine para o diverso número dos seus produtos, que se apresentavam amiúde no programa. Com isto, ficam manifestas as duas formas de controle. Os produtores (televisionários) do programa controlavam Truman pelo medo do mar, e os patrocinadores (leia-se a mídia) controlavam os telespectadores, por meio de um espetáculo intensamente atraente que oportunizava a fusão entre realidade e ficção, uma forma nova de entretenimento, algo como a flor de lótus. Ao fim e ao cabo, uma fuga da realidade, um ópio. O medo se constitui na mais eficaz arma de controle das pessoas, ainda hoje é assim.Tem-se medo de não ter sucesso pessoal, portanto medo de arriscar, de errar e de falhar; medo de não passar no vestibular; medo da morte, medo do inferno, medo de não ir pro céu; medo da violência, justamente porque se tem medo de morrer, e por aí vai. A quem interessa que as pessoas na sociedade atual vivam com medo? Quem se beneficia com isto?


O modo de ação da mídia é semelhante ao agir de uma pessoa que possui a visão e uma extrema preocupação com quem não a possui e deseja orientá-lo e protegê-lo. No “Esquadro” de Adriana Calcanhoto, lê-se: “eu quero chegar antes pra sinalizar o estar de cada coisa, filtrar seus graus”. Ou seja, a mídia deseja sempre chegar antes, inventar desejos, criar necessidades, traduzir “o mundo” (antes de todos) para uma massa de acéfalos consumidores. No entanto, este seu desejo, ao invés de manifestar, de revelar uma possível preocupação com as pessoas, ao contrário, camufla a voracidade em obter crescentes lucros, capital. E, por fim, fica o “remoto controle”.


Quando no filme o produtor (Christof) é perguntado por que o pai do Truman tinha “saído de cena” no programa, a resposta surpreende: “quando Truman cresceu, fomos forçados a criar maneiras de mantê-lo

na ilha”. Ou seja, quando Truman ainda era uma criança, seu pai morreu num afogamento simulado pelos produtores, em alto mar, numa luta com as forças da tempestade (também simulada), gerando na criança o trauma, pavor da água e, portanto, medo do mar. Truman vivia numa ilha.


Outra pergunta é feita ao Chistof (produtor): “Por que acha que Truman nunca chegou perto de descobrir a natureza real do seu mundo...?” A resposta: “Aceitamos a realidade do mundo no qual estamos presentes. É muito simples.” Pelo menos no

português do Brasil, “Aceitar” significa: “receber o que é oferecido”. Quem aceita, aceita alguma coisa de alguém. Se há quem aceite, há algo a ser aceito e há quem o oferece, ainda que não seja a verdade sobre aquilo que está sendo oferecido.


Uma das ideias às quais o filme critica é a de que “o mundo, o lugar onde você vive (as pessoas), é onde é doentio. Quem pronuncia no filme estas palavras é o produtor Christof, afirmando que o mundo de Seahaven (a ilha) “é o modelo de mundo”. Talvez esta ideia seja defendida ainda hoje pelos meios de comunicação de massa, quando transmitem insistentemente violências das mais diversas naturezas. Sobretudo, em alguns canais de televisão de Salvador, em pleno horário de almoço. O filme critica o pensamento de que só é possível viver como ator (representando e fingindo) ou como prisioneiro da mídia.


No filme, no anverso desta ideia, está a de que “se estivesse (Truman) realmente determinado a descobrir a verdade, não haveria maneira de detê-lo”. Penso que absolutamente nenhuma coisa, pensamento ou ideologia é capaz de impedir, de deter uma pessoa, quando esta está determinada a descobrir o que são as cosias, o que se esconde por detrás do simulacro, por detrás da fantasia. A busca mais visceral da existência humana é sobre a verdade das coisas, é a busca pelo conhecimento. Contudo, como em toda trilha, há desvios, atalhos que abreviam o trajeto, mas, a trilha que conduz ao conhecimento não exige pressa, antecipação de qualquer coisa que seja, antes do justo tempo. Ao fim, permanece o desejo de não está sob jugos que se contrasta com o de poder, paralelo aos quais está o profundo anseio de liberdade da alma humana.

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*Quadros: Wassily Kandinsky.

**Filme: The Truman Show - Peter Weir

***Música: Adriana Calcanhoto – Esquadros

****Livros:

ALVES, Rubem. Filosofia da ciência: introdução ao jogo e suas regras. 2ª ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1982.

CHAUÍ, Marilena. “Simulacro e poder: uma análise da mídia”. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2006.

DESCARTES, R. Discurso do Método: para bem conduzir a própria razão e procurar a verdade das ciências. São Paulo: Paulus, 2002.

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