DonJuanismo em Camus

Prazer x Sentimento

Para todas as pessoas, basta o amor? Este é suficiente para solucionar todas as demandas existenciais? Algumas coisas são necessárias, mas, nem por isso, suficientes. Questiono o amor. Que me responda, então! Na esfera do amor, há algo de absurdo. Há um descentramento expansivo capaz de fazer aflorar as realidades mais recônditas do ser. Trazer à consciência dimensões, realidades, naturezas outras, forças tais, que surpreendem o próprio ser. No amor, há algo de sobre-humano, por isso, sublime. Segundo Camus, “Quanto mais se ama, mais o absurdo se consolida”.

O amor se faz e se refaz, consolida-se e se expande lá, onde nenhuma palavra nunca pisou, justamente porque ele acontece no reino das inconsciências humanas. Na esfera onde a razão, tão senhora de si, não consegue controlar, manipular nem dirigir. O amor escapa à razão humana assim como o vento escapa a qualquer tentativa de controle.

Nas palavras de Don Juan, não é necessário amar uma vez apenas para poder amar muito. O que extrair do confronto entre Don Juan e Tomas na Insustentável Leveza do Ser (Milan Kundera)? Em quem está a possibilidade da própria multiplicação, sendo esta a expressão da alegria particular de ser o que é? Ou em quem habita a tristeza como sintoma de quem ignora ou tem esperança de algo? Para Camus, “Don Juan ignora a tristeza”. Ainda que “ele foi (sic) triste no tempo em que esperou”. E nesta afirmação, encontram-se evidências mais que suficientes para esboçar uma resposta. Esperar outra vida. Esta é a expressão multiforme do estágio em que chegou o cérebro humano. Evoluiu e esboça a insensatez de uma eternidade como forma de existência. Kant encontrou os limites da Razão Humana e o revelou ao afirmar que realidades como Deus, alma, liberdade, (...) são consideradas pela razão humana, todavia, a partir disto, nada se pode conhecer, pois que falta, neste processo, o trabalho da sensibilidade e do entendimento.


Para Fausto, basta o céu, mas o inferno sempre chega antes e encanta primeiro. Afinal, a possibilidade da absolvição, ou da expulsão do paraíso, só se dá quando o pecado já foi consumado. Assim, “o que vem depois da morte é fútil e que longa sucessão de dias para quem sabe viver!”. Se de fato há outra vida, não seria prudente reservar a preocupação com esta dita vida quando, de fato, estivéssemos vivendo-a? Nisto consiste a inteligência de poucos homens, veementemente taxados de ateus, de irresponsáveis e de perdidos. Mas, não se inquietem, porque “Não acreditar no sentido profundo das coisas é a índole do homem absurdo”. E isto, ninguém pode mudar, nem mesmo o homem absurdo.


Contudo, na autoconsciência do Don Juan está o absurdo de si mesmo. Absurdo que se exprime no fato de o seu desejo de possuir sempre outras tantas mulheres revelar a potência deste desejo que se encontra em constante conflito com o ideal de amor que a cultura humana construiu. Don Juan preza pela a quantidade, ao contrário do santo que se embriaga com poucos e míseros possíveis encontros com a divindade, desde que sejam todos plenos de qualidade. Dom Juan é não só o anverso do santo, mas do homem moralmente construído pelo ideal cristão.


Quem poderá afirmar que Don Juan não concedia todo amor a cada mulher com quem se relacionava, ainda que, terminado o “enlace”, o desejo lhe impulsionasse ao encontro com outra? O desejo do novo tangia-o ao novo, ainda que a mulher que estava deixando fosse muito bela e desejável também. Da consciência deste amor ideal é que nasce Don Juan como janela que convida a olhar para além do que se amotina no calabouço de um frágil ideal de sentimento. Para além da janela, há continuamente horizontes novos para os quais se dirigem nossa percepção.

Se o Don Juan foge ao modelo de homem moralmente construído, isto é, foge ao ideal daquele homem ressentido (Nietzsche), qual é o amor que lhe “sacode” o ser? Ou antes, Don Juan postula outra ideia de amor? Don Juan, consciente ou inconscientemente, se quer fazendo apologia de outra ideia de amor? Nas palavras de Camus, lemos que “Nós só chamamos amor o que nos liga a certos seres por alusão a um modo de ver coletivo e pelo qual os livros e as lendas são responsáveis. Mas conheço apenas, do amor, essa mescla de desejo, de ternura e inteligência que me liga a um ser. Esse composto não é o mesmo para um outro.

Não tenho o direito de estender a todas essas experiências o mesmo nome”. Diante da ideia de amor, comumente difundida, o coração do homem comum arde abrasadamente, da mesma forma que arde o coração do guerreiro, soldado de uma causa que lhe soa maior, ainda que ideologicamente. Em ambos, a ignorância e a obediência são morte e salvação. Nos dois, mediante a natureza das ações que desenvolverem, encontrar-se-ão os prêmios ou os castigos, as medalhas ou as reprovações, os louros ou as cusparadas.


Decididamente, não há castigo para Don Juan, porque agiu justamente, segundo a verdade de sua cabeça. Atesta isto, toda a esfera do seu ser. Se há homens que desejam castiga-lo são os homens do ressentimento (Nietzsche). Todavia, o castigo que estes imputam aos outros não é válido, pois que tais castigos revelam mais sobre seu próprio ressentimento que sobre o pseudo “crime” do acusado. A ira do ressentido dilata-se continuamente, porque continuamente ele aprofunda-se em tornar-se um ser execrável, inclusive segundo sua autoconsciência. Não é juiz de nada, é, antes sim, um odioso covarde.


Se for possível postular que Don Juan, ao invés de punido, termine em alguma cela de algum mosteiro espanhol, é possível igualmente, pensar que, neste ato de Don Juan, encontra-se a “vitória” dos ressentidos, pois estes, diante de tal fim para Don Juan, julgam ser isto já um castigo antecipado para ele. Assim, pensam que estão eternamente certos e que o seu modo de vida é o verdadeiro diante dos homens. Os ressentidos julgam igualmente que terminar a vida assim para um Don Juan é um recado, uma lição da divindade.


Comentários

  1. O que torna Don Juan distinto, ainda pela interpretação de Camus, é o fato de estar consciente do absurdo de ser o que é... isto é um tipo raro de realismo, mas que é capaz de transformar todos os abismos infinitos da existência em abundantes fontes de vida e significado.

    Como diz Camus no final do seu texto sobre Don Juan, "O fim último, esperado mas nunca desejado, o fim último é desprezível.".

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