ENTRE DEUSES E HOMENS (II)

O Pseudo-Malogro de Ser Livre

Fica [tu] sabendo que jamais os homens se creram tão livres como agora, e, no entanto, a liberdade deles depositaram-na humildemente a nossos pés. (DOSTOIÉVSKI, 1995). Esta frase é, talvez, a que melhor exprime a real situação dos homens perante a religião, tanto antes como o é agora e como, certamente, continuará a ser no futuro. Uma situação de silenciosa, mas entranhada submissão. Uma obediência irrestrita, para um tirano pérfido, mas, revestido de uma pseudo-santidade.

Os templos das igrejas cristãs neopentecostais, sejam estes grandiosos ou, em sua maioria, simples galpões maquiados, a nada mais se prestam, a não ser a duas ações: uma, a de “administrar” os sofrimentos alheios em benefício próprio, sem, no entanto, nunca os dissipar, porque o sofrimento é inerente ao ser do homem; outra, por sua vez, a de rapinar o bolso dos incautos. Ninguém jamais, sequer, desconfia do logro ou da esparrela a que está submetido nestas condições. Espinosa, investigando as causas da servidão humana, faz as seguintes interrogações, no Tratado Teológico-Político:

Por que o povo é profundamente irracional? Por que ele se orgulha de sua própria escravidão? Por que os homens lutam “por” sua escravidão como se fosse sua liberdade? Por que é tão difícil não apenas conquistar, mas suportar a liberdade? Por que uma religião que reivindica o amor e a alegria inspira a guerra, a intolerância, a malevolência, o ódio, a tristeza e o remorso? (DELEUZE, 2002).

A resposta à maioria destes questionamentos está no desejo irrefreável de Poder e de Dominar. Na obtenção destes elementos, condição e status, a Igreja, assim como o Tirano, se predispõe a expedientes des-graçados, por vezes, vis. Na história humana, a Igreja se constituiu no padre e no tirano, ao mesmo tempo. Na Idade Média, a igreja agia assim: por um lado, condena, submete, tortura, espeta, queima, fere, fura e mata e, por outro, absolve, alivia, ‘acolhe’, perdoa, “reconcilia” e apazigua. Tudo isto se dava num tempo em que os olhos da razão eram incapazes de dar-se conta do jugo. E, nos templos de silêncios sombrios, davam-se toques de afagos, como quem desgraçadamente silenciou a própria consciência.

Espinosa, em toda a sua obra, não cessa de denunciar três espécies de personagens: o homem das paixões tristes; o homem que explora essas paixões tristes, que precisa delas para estabelecer o seu poder; enfim, o homem que se entristece com a condição humana e as paixões do homem em geral (que tanto pode zombar como se indignar). (...) O escravo, o tirano e o padre... A trindade moralista. Nunca, desde Epicuro e Lucrécio, se mostrou melhor o vinculo profundo e implícito entre os tiranos e os escravos: “o grande segredo do regime monárquico e seu profundo interesse consistem em enganar os homens, dissimulado, sob o nome de religião, o temor ao qual se quer acorrentá-los; de forma que eles combatem por sua servidão como se fosse sua salvação. (...) O tirano precisa da tristeza das almas para triunfar, do mesmo modo que as almas tristes precisam de um tirano para se prover e propagar. De qualquer forma o que os une é o ódio à vida, o ressentimento contra a vida. (DELEUZE, 2002).

Tiranos e padres/pastores são, em última instância, homens que, esquecendo-se de serem, eles mesmos, homens, e, já mortos (brilho), revestem-se de uma nova condição e de nova relação de ser para escarnecer a vida, desenvolvendo, portanto, novas, mas não inéditas, ações. Estes são os homens do ressentimento (Nietzsche) para quem qualquer tipo de felicidade é uma ofensa, e faz da miséria ou da impotência humanas sua única paixão. (DELEUZE, 2002) .

Os que não sabem senão censurar os homens e escalpelizar os vícios de preferência a ensinar-lhes as virtudes, e que não sabem fortificar os espíritos dos homens mas sim deprimi-los, esses são insuportáveis para si e para os outros. Daí que muitos, em virtude de uma impaciência excessiva de alma e de um falso gosto pela religião, tenham preferido viver no meio dos animais a viver entre os homens. (ESPINOSA, 1991).

Ao discurso do medo, se junta o do vazio existencial. Vazio do quê, se o homem nunca esteve pleno de absolutamente coisa alguma. È próprio de sua constituição ser inacabado; está em processo, em “vias de...”. Nascemos todos nus, no sentido mais amplo e profundo, sem que tivéssemos, por nós mesmos, um sentido qualquer que fosse para o ato de “existir” e continuamos assim até a morte, vazios de sentido para a existência, se antes não ousarmos em criar UM para nós próprios. Crie, construa, produza o seu sentido para a sua vida, ninguém o fará por você, todavia, não faltam quem deseje construir um sentido de vida para você.

Caso o façam para ti, continuará sem sentido para você, porque somente o seu sentido, aquele provindo das suas entranhas, faz sentido para você. Se acaso se percebe sem sentido para a sua vida é única e simplesmente porque nunca teve a audácia e a ousadia suficiente para criá-lo e defendê-lo, enquanto durar a sua existência. Estabelecer prioridades, isso mesmo, no plural, e criar seu próprio sentido de existir, eis a primeira e mais indispensável ação a ser feita em prol de si mesmo. O segredo da existência humana consiste em encontrar um motivo de viver. (ESPINOSA, 1991). No entanto, além de toda esta possibilidade, continua a religião:

Nenhuma ciência lhes dará pão, enquanto permanecerem livres, mas acabarão por depositá-la a nossos pés, essa liberdade, dizendo: ‘Reduzi-nos à servidão, contanto que nos alimenteis’. Compreenderão por fim que a liberdade e o pão da terra à vontade para cada um são inconciliáveis, porque jamais saberão reparti-los entre si! Convencer-se-ão também de sua impotência para ser livres sendo fracos, depravados, nulos e revoltados. Porque não há, para o homem que fica livre, preocupação mais constante e mais ardente do que procurar um ser diante do qual se inclinar (ESPINOSA, 1991).


Veias Abertas em Lágrimas e Sangue

Certamente, consciente ou inconscientemente, não eram outros os sentimentos e os desejos da Igreja Católica quando abriu as Veias da America Latina (Eduardo Galeano) com as mais variadas ações e instrumentos, quando fez seu sangue jorrar impiedosamente. Se alguns homens são considerados mártires por seus feitos realizados em nome da fé, muitos tantos são mártires porque foram vítimas das violências executadas em nome dessa fé. Como justificar que mulheres foram queimadas, que câmaras e instrumentos de torturas foram feitos e utilizados em inocentes? Haveria um discurso justo e lógico o suficiente para tamanha violência? É fato, o cristianismo já possui suas mãos sujas de sangue inocente.

Há quem afirme existir homens que possuem medo de direcionar suas existências segundo a própria faculdade, com medo de decidir-se e de agir segundo a própria determinação. Em havendo medo, há, sobretudo, receio de falhar. O medo de falhar foi incutido no homem da moral cristã. Este foi reduzido e ideologicamente pensado pela religião como incapaz de gerir e de construir seu próprio destino.

Fazer crer que a pessoa humana não pode porque é fraca, que deve sujeitar-se porque erra e peca, isto, ao mesmo tempo em que se apresenta como infalível é, explicitamente, o arcabouço da ação de quem se quer dirigindo a existência das pessoas, de quem as deseja heterônomas. O homem da religião não é independente e nunca o será, ainda que ele julgue que é dependente de Deus e, por isso, livre. Ao inverso, sua dependência é da Religião, ainda que não o perceba. Será sempre um ser diminuído em sua auto-imagem porque assim lhe foi ensinado, desde tenra idade.

A dependência do homem da religião está no fato de que esta acalma sua consciência, perdoa seus supostos pecados, “o redime com Deus, com ele mesmo e com a sociedade”. Este suposto resgate é, antes, a confirmação de um contínuo seqüestro de si mesmo. O pecado na religião é o cabresto que mantém os homens presos e frágeis. O arrependimento não é virtude, por outras palavras, não nasce da Razão; mas aquele que se arrepende do que fez é duas vezes miserável ou impotente.(ESPINOSA, 1991).

Não há, repito-te, preocupação mais aguda para o homem que encontrar o mais cedo possível um ser a quem delegar esse dom da liberdade que o infeliz traz consigo ao nascer. Mas, para dispor da liberdade dos homens, é preciso dar-lhes a paz da consciência. (DOSTOIÉVSKI, 1995).

Perante Deus, possua este qualquer nome, não há qualquer necessidade de remissão, pelo simples fato de que Deus está isento de paixões e não é afetado por nenhuma afecção de alegria ou de tristeza. (ESPINOSA, 1991). Isto habilita o homem a existir livre da influência de uma moral cristã deprimente e aviltante.

Considerações Finais

O homem é, por natureza, um ser de grande dignidade. Não são de sua natureza a submissão, a escravidão nem o jugo. A existência humana é desafiante, individual e coletivamente. Esta desafia o indivíduo a assumir a postura de uma pessoa – persona – humana, cônscia de sua condição de ser, de seu próprio destino e da responsabilidade por si próprio. Esta persona é desafiada, sobretudo, a gerir sua existência com autonomia.

Nesta “parede” não há mais lugar para um “quadro” de submissão supersticiosa que, no fundo, é submissão disfarçada aos interesses de um grupo especifico de pessoas: a religião. Uma vez que esta é instrumento, pode ser utilizada para o bem e para o mal. Não aderir a uma religião específica não se trata de ateísmo, porque é perfeitamente possível uma relação imediata com Deus, sem ter cerceada sua integridade de natureza. Trata-se, antes, de não submeter a própria vida ao jugo de uns poucos e servir-lhes no afã de servir à divindade. De que tipo de atividade humana necessita uma divindade? Desconfie do Deus que deseja ser louvado, adorado, bajulado o tempo todo (Nietzsche).

O homem é para grandes coisas, para coisas nobres e admiráveis, e não para a sujeição. Em si está o potencial para desenvolver grandes feitos em prol de si mesmo e do humano em geral. Enquanto os templos estão cheios de gente buscando, sustentado o luxo de uns poucos e pagando taxas exorbitantes, maior prova de sua submissão ideológica, as bibliotecas e os livros, instrumentos que potencializam a autonomia humana, deixam de ser visitados, experimentados e vivenciados.


Referências

ALVES, Rubem. O que é Religião? São Paulo: Ed. Loyola, 2005;

CHAUÍ, M. S. Espinosa: uma filosofia da Liberdade. 2ª Ed. São Paulo: Moderna, 2005. – (Coleção Logos);

DELEUZE, Gilles. Espinosa: filosofia prática. São Paulo: Ed. Escuta, 2002

DOSTOIÉVSKI, Fiodor. Os Irmãos Karamázovi. São Paulo: Nova Cultural, 1995;

ESPINOSA, Baruch. Ética. Col.. São Paulo: Nova cultural, 1991 – (Os Pensadores);

_________________. Tratado Teológico-Político. - 2ª Ed. - São Paulo: Martins Fontes, 2008;

GALEANO, Eduardo. Veis abertas da América Latina. Disponível em: http://copyfight.noblogs.org/gallery/5220/Veias_Abertas_da_Am%C3%83%C2%A9rica_Latina%28EduardoGaleano%29.pdf

LIPOVETSKY, Gilles. A Era do Vazio: ensaios sobre o individualismo contemporâneo. Barueri, SP: Ed. Manole, 2005;

RIZK, Hadi. Compreender Spinoza. Petrópolis, RJ: Ed. Vozes, 2006;

SCRUTON, Roger. Espinosa. São Paulo: Ed. Loyola, 2005;

ZILLES, Urbano. Filosofia da Religião. São Paulo: Ed. Paulus, 1991.

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