Vestígios

Vestígios do Indivíduo

A modernidade ou hipermodernidade, como preferem alguns, se configura num espaço-temporal no qual se fazem latentes a reflexão e a discussão sobre o indivíduo, a sociedade e sua mútua e intrínseca relação. A reflexão acerca do indivíduo se apresenta por diversas vias de discussão, seja pelo viés da ética, da crise do humanismo, pelo da presença do niilismo ou pelo viés metafísico. No cerne, todas estas dimensões se coadunam e se interpenetram mutuamente na composição da compreensão e do discurso acerca do individuo moderno, de sua caracterização e de sua situação atual.

A análise desta temática na contemporaneidade visa compreender o ser individual do homem moderno, possibilitar aos indivíduos uma auto-compreensão e pensar a coletividade, representada no conceito sociedade. Tem por objetivo igualmente oferecer aos indivíduos a compreensão do ambiente, isto é, do contexto e da natureza da sociedade da qual faz parte, possibilitando que o sujeito social conheça a natureza das relações sociais, se identifique nelas e se perceba como sujeito ativo e agente de ação transformativa. A modernidade, portanto:

Caracteriza-se pela forma participativa das tomadas de decisões na vida social, valorizando o método democrático e a liberdade de expressão e de agregação. O objetivo da sociedade moderna é oferecer uma vida digna da condição humana, na qual cada um possa realiza as diversas dimensões de sua personalidade, abandonando as restrições impostas pela menoridade, as constrições de autoridade externas e ingressando na plenitude expressiva da própria subjetividade (PETRINI, 2003, p. 27).

Apenas a sociedade moderna concebe o sujeito. É nela, portanto, que o indivíduo começa a ser pensado, seja pela filosofia, pela história, pela psicologia e política, seja pela antropologia, inclusive porque a maioria das ciências citadas nasce e se desenvolvem com a concepção de sujeito desenvolvida na sociedade moderna. O indivíduo, enquanto sujeito ontológico, adquire locus central a partir de René Descartes e sua Filosofia. No entanto, já na filosofia de Sócrates, Platão e Aristóteles, portanto, na cultura clássica, já se produziu uma imagem do indivíduo. Este é pensado, filosófica e socialmente, como sujeito da moral, da ética e da política, compreendendo, portanto, que a ação individual produzia consequências no todo social, na Pólis, isto é, na cidade.

O pensamento da cultura clássica acerca do indivíduo, enquanto sujeito social, o definia como zôom logikón e como zôom politikón (animal lógico e animal político). As duas definições estão em profunda interdependência, pois, apenas enquanto animal lógico, ou seja, enquanto possui o Logos (razão; discurso), é possível ao homem ser um animal político.

A Filosofia faz depender a ação política do homem da posse do Logos e somente na cidade, em sociedade, é possível ao homem realizar-se como ser racional, o que envolve e exige a capacidade da linguagem e da comunicação. Nas diversas funções atribuídas ao indivíduo social pela cultura clássica, uma em especial ganha relevo, a saber, a exigência de que o sujeito fosse comprometido com a cidade, com a sociedade, para ser considerado cidadão.

Assim, compreende-se que o conceito de sociedade possuía uma relação de interdependência com o de cidadania. O compromisso com a cidade definia a natureza do cidadão grego. Portanto, “assim como o homem civilizado é o melhor de todos os animais, aquele que não conhece nem justiça nem leis é o pior de todos” (ARISTÓTELES, A Política, p. 6). No entanto, na Idade Média, o conceito de sujeito social desaparece completamente nas estruturas estanques dos feudos e nos discursos proferidos pela Igreja, senhora do altar, do trono e do tribunal. O conceito desaparece justamente porque o ‘ser’ sujeito desaparece, enquanto categoria ativa na sociedade de então, porque os donos dos feudos mandavam e restava aos servos obedecer.

A dignidade que Descartes confere ao individuo é notável, uma vez que o considera critério de verdade racional. No empirismo, o sujeito é, igualmente, critério de verdade, pois que é este quem vivencia a experiência da qual advém o conhecimento e este se dá apenas no sujeito. Ora, os sentidos, compreende-se a sensibilidade, estão no sujeito cognoscente. Com isto, inaugura-se o antropocentrismo e, consequentemente, a antropologia filosófica, que se faz presente no século XXI.

Em alguns aspectos, especial atenção foi conferida também ao indivíduo pela Reforma Protestante (século XVI). Dentre os aspectos, pode-se exemplificar a possibilidade (poder) de interpretação individual da Bíblia, (antes restrita ao clero católico) e a alfabetização dos indivíduos para que pudessem ler a Bíblia em sua própria língua. Para os aqueles indivíduos, sair do estado de “escuridão intelectual”, significou muito mais do que apenas poder ler a Bíblia, ainda que os mesmos não tivessem consciência disto. Saber ler certamente é um saber que gera autonomia individual. Além disso, o movimento protestante possibilitou novo conceito do lucro individual (A ética Protestante e o Espírito do Capitalismo – Max Weber), o que para os católicos se configurava em pecado.

Pode-se pensar o sujeito a partir de diversas ciências sociais, todavia, algumas teorias tentam precisar o conceito do indivíduo e seu papel na história social. Dentre as várias interpretações, citamos o Subjetivismo Individualista (Nietzsche 1844-1900), o Subjetivismo Coletivista (Hegel 1770-1831) e o Personalismo (Jacques Maritain 1882 –1973).

Para o Subjetivismo Individualista, teoriza o indivíduo como real agente da História, pois da sua ação transformativa, resultam os processos históricos. O Objetivismo Coletivista conceitua o indivíduo como sendo um efeito da evolução histórica que, por sua vez, resulta da interferência das forças objetivas. O Personalismo, por sua vez, pensa o indivíduo como criador e produto da História, capaz de influenciar e ser influenciado pela História.

Comentários

  1. Vivemos uma crise da noção de indivíduo. Quanto mais as mentes se voltam ao indivíduo atomizado, mais é reforçada a hostilidade do meio aos anseios individuais. Horkheimer dedicou um capítulo de seu Eclipse da Razão pra tratar do "ocaso do indivíduo", e, com as devidas mediações, a argumentação permanece bastante atual.

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  2. Acredito, meu caro, que em nenhuma época anterior, na história individual e coletiva do homem, o homem se interessou tanto por si mesmo e pelo todo. Ainda que os interesses que justificam a maioria dos estudos sejam espurcos, no sentido de que tais estudos são utilizados para forçar o homem à compra desnecessária, por exemplo, não é possível desconsiderar o mapeamento do código genético num vértice e a profunda e constante discussões pedagógicas para alterar os moldes da educação, tendo em mente uma visão mais multirreferencial (Ardoino) e complexa (Morin) do sujeito cognoscente. Penso, no entanto, que, no que se refere à política em geral e ao comportamento individual e coletivo do homem na sociedade em particular, ainda há muito que ser respondido, pensado, ponderado e refletido. A visão do Lipovetsky é otimista, apensar de manter "o pé no chão" e este otimismo, somos convidados a corporificá-lo no modo de existência atual. Muito obrigado pela sugestão do Horkheimer quando ao "ocaso do indivíduo". A temática do indivíduo, me interessa muito. Sucesso para ti! Fica bem!!

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