ENTRE DEUSES E HOMENS (I)

ENTRE DEUSES E HOMENS

O homem é um ser de tendências, de inclinações. Seu ser encontra-se em um constante, dinâmico e contínuo movimento que o impulsiona para fora de si mesmo, para um outrem. Por conseguinte, além da Razão, o que o diferencia da maioria dos animais são igualmente suas emoções e sua capacidade de produzir signos, de evocá-los, representá-los e de substituí-los. A partir de ubérrima capacidade, é-lhe possível a vida em sociedade, a possibilidade da ética e da liberdade. Em sua trajetória existencial, a religião, isto é, o elo entre o humano e o divino, se constitui num dos signos mais comuns, estando nos limites da pura razão (Kant).

Cada pessoa possui uma ideia sobre o que seja o homem e sobre o que vem a ser a religião, quer obtenha ou não uma experiência particular desta. Não obstante tal fato, definir a religião, contemplando suas diversas facetas, é tão difícil quanto conceituar o homem. Talvez desta dificuldade advenha a complexidade do conceito religião, uma vez que esta não ‘é’ sem aquele e ao passo em que muitos humanos pensam suas existências a partir daquela.

Seja como ópio (Marx), seja como mera criação humana, a religião continuamente é vista como ideologia de manipulação do homem na sociedade. Há quem afirme ser a religião nada mais que mecanismo de controle da massa e, nesse sentido, sua estratégia de ação suplanta a da mídia. Todavia, muitas denominações religiosas constituem-se em grandes oportunidades de crescimento e de autoconhecimento para o homem. Situo neste grupo, sobretudo, o budismo. As fontes explicativas para a manipulação religiosa da massa encontra-se no período medieval (século V- XV), período no qual a Igreja Católica, única denominação cristã oficialmente existente, possuía o controle absoluto de todas as esferas da vida humana. Após a queda do Império Romano (476 d.C.), no ocidente, a Igreja Católica foi o império que ficou de pé.

O fato de não haver, no período medievo, quem soubesse ler na plebe, a não ser os nobres e os clérigos, situava todos os plebeus (populaça, vulgo, gentalha, populacho) na condição de massa manipulável. Este fato possuía uma dupla face, isto é, quando somente clérigos e nobres sabem ler, o padre/pastor serve ao tirano e vice-versa para fazer impor suas explorações. A exploração do trono e a do altar são iguais, a do trono faz-se simultânea à do altar.

Contudo, saliento que, neste contexto, as pessoas sequer conheciam o conceito de sujeito, de indivíduo. Este conceito vai surgir no século XVI-XVII com os filósofos racionalistas (Descartes, Espinoza, Libniz, Pascal) que colocavam na razão humana o critério de verdade, inaugurando assim um novo antropocentrismo. Saber ler-se a si mesmo, o seu próprio destino e o mundo, para além de saber ler livros, é indispensável para gerir sua própria existência sem que se submeta ao jugo mais vulgar dentre os mais vis.

Na Idade Média, o mundo era essencialmente rural e as pessoas eram mais místicas, analfabetas e dominadas pelo medo, o que resultou necessariamente na aceitação incondicional do discurso religioso, especialmente nas questões existenciais deflagradas pelo medo e pelo sofrimento humano. Aceitação irrestrita do discurso eclesial quanto à miséria financeira em que se encontravam e, por fim, também quanto ao que se daria após a morte do indivíduo, ou seja, o céu como prêmio ou o inferno como castigo. É forçoso destacar que o critério de verdade do discurso, neste contexto, é baseado antes na autoridade que na cientificidade.

Hoje, o mundo é majoritariamente urbano, as pessoas são mais céticas que antes e, no entanto, a manipulação do homem ainda se dá de forma alarmante. A infindável quantidade de igrejas confirma isso, sobretudo as neopentecostais, evangélicas ou católicas, com seus discursos apocalípticos e suas revelações terrificantes acerca dos destinos da humanidade. Se, no passado, o medo do inferno e do demônio se constituía na base do discurso ideológico religioso, ainda hoje a base do mesmo continua sendo o medo e a esperança, realidade na qual o pecado e a culpa são seus instrumentos de controle e de poder, domínio este do qual não pretendem abrir mão dado os privilégios e as benesses que dele adquirem. A incapacidade humana de lidar com a culpa coloca as pessoas numa condição de fragilidade.

Algumas pessoas continuam igualmente tendo medo de habitarem o inferno ao morrerem, todavia, a maioria tem medo maior do fracasso pessoal e profissional, medo de continuar derrotados, já que a maioria é tomada por sementes mal plantadas de uma sociedade abortiva (Cazuza – blues da piedade). Portanto, antes do medo do ‘pós-morte’, há o medo do fracasso na vida e, se alguma igreja garante o sucesso para alguém (e várias garantem!), este vai se submeter irrestritamente aos seus caprichos e explorações, porque quer o sucesso.

Contudo, todos empreendem uma luta hercúlea e inglória para não serem coisificados em suas existências, sem, no entanto, conseguirem resultado algum. Todos têm medo de continuar na miséria; destes, todos têm esperança de sair dela; já outros têm a esperança de não voltar à indigência ou de nunca se encontrar na penúria. O medo é o fertilizante da religião, seja o medo do que se dará após a morte, seja do que acontecerá no dia seguinte. Livrar-se do medo e desenvolver a capacidade de lidar com a própria culpa, seja ela qual for, é o passo inicial para a liberdade do domínio religioso.

Espinosa, filósofo Holandês do século XVII, se utilizou da Filosofia para explicitar as manobras ideológicas da Religião. Em tom de denúncia, Espinosa se expressa:

A que ponto o medo ensandece os homens! O medo é a causa que origina, conserva e alimenta a superstição. Se os homens pudessem, em todas as circunstâncias, decidir pelo seguro ou se a fortuna se lhes mostrasse sempre favorável, jamais seriam vítimas da superstição. (...) Se têm dúvidas, deixam-se levar com a maior das facilidades para aqui ou para ali. (ESPINOSA, 2008).

Afinal, qual a origem do medo? O pensador aprofunda a compreensão das origens do medo e da esperança:

As coisas que são por acidente causa de esperança ou de medo são chamadas bons ou maus presságios. (...) Daí, nasceram as superstições de que, por toda parte, os homens são vítimas. (ESPINOSA, 1991).

Em geral, não é necessariamente o desejo místico desinteressado, supostamente injustificado, de unir-se ao divino e o de desenvolver e manter uma relação de intimidade com a divindade, com o sagrado, que impulsiona o contato e a submissão a uma religião. É, antes sim, o medo de que males aconteçam em suas vidas particulares e a esperança de que coisas boas aconteçam que justificam tal submissão. Se, em sua totalidade, o desejo de uma relação com a divindade fosse puramente espiritual e místico não haveria quaisquer necessidades de esta relação ser mediada por outros homens pelos ditames de uma religião qualquer. Se todos derivam da divindade, não há qualquer necessidade de intermediários entre esta e aqueles. Na afirmação desta necessidade, difundida pelas religiões, encontra-se uma das falácias do discurso religioso. Quando esta relação se dá de forma imediata (sem mediadores), o humano manteria uma relação com a divindade pura de dogmas, isenta de proibições nefastas e livre das ações de proselitistas.

A atividade de algumas religiões sugere que estas não estão a serviço estritamente da divindade, propõe, ao inverso, que estão a serviço da sua respectiva Igreja, ou seja, tais religiões, ao invés de supostamente re-ligare o homem à divindade, o ligam e os aprisionam às suas igrejas. Nisto está a justificativa do fato de preocuparem-se tanto com sua expansão e difusão e, sobretudo, com a perda de fiéis de umas para as outras. No presente, há um discurso ecumênico, afirmando a necessidade de “unificação” das igejas cirstãs. Alcança-se com isto o cúmulo da desfaçatez e camuflam reais intenções.

Afirma-se que o fundamento do cristianismo é a necessidade que o humano tem de ser religado à divindade, de ser salvo mediante a re-ligação com o sagrado, todavia, partindo dos princípios de que esta suposta ruptura nunca tenha se dado (mito do gênesis) e de que o homem sempre tenha tido acesso à divindade, sempre e quando deseja, cessa plenamente, portanto, a necessidade de uma mediação entre os homens e divindade. Cumpre afirmar que o discurso da ruptura é a “pedra de toque” das religiões cristãs. Negar tal ruptura é negar a suposta necessidade das religiões para mediar a relação entre os homens e o sagrado.

Quando de fato a ruptura nunca se deu, pode-se afirmar que a primeira atividade da religião cristã foi a de cegar o homem com o fascínio do céu e a de iludi-lo com a ideia da ruptura, causada pelo pseudo-pecado original. Ao mesmo tempo em que cegou o homem, o tornou submisso, fraco, impotente, subjugado e, com isto, imputou-lhe uma paixão exacerbada pelo céu, ‘lugar’ que justifica muitas atrocidades. O pecado original é um mito tal qual Adão e Eva e o suposto Paraíso. É metafísica da pura abstração. Quando o fundamento do pecado original é irreal, isto é, Adão, Eva e o paraíso, tudo o mais que se sustenta sobre isto, tende a desmoronar.


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